Famílias do Sul e do Sudeste do Brasil sofrem há gerações com uma forma tão agressiva de câncer que alguns dos afetados chegam a se referir à doença como uma maldição hereditária. Um grupo de pesquisadores acaba de mostrar que o problema remonta, de fato, a um ancestral comum --segundo eles, provavelmente um tropeiro que deixou descendentes país afora no século 18.
Por enquanto, contudo, a principal implicação dos estudos é bem mais prática do que entender a história populacional do Brasil Colônia. "Certa parcela dos tumores do Sul e do Sudeste, que nós ainda não sabemos qual é, mas que certamente não é desprezível, está ligada a essa mutação", afirma a médica Maria Isabel Waddington Achatz, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. Achatz é coautora de um artigo na revista científica "Human Mutation" que detalha esse trabalho de detetive.
Caso especial
A alteração no DNA, típica de algumas das famílias do Sul e Sudeste, se encaixa num conjunto mais amplo de mutações ligadas a formas severas de câncer. Esse grupo maior, conhecido como síndrome de Li-Fraumeni, se caracteriza por vários tumores na mesma pessoa --de mama, do cérebro e da glândula suprarrenal, por exemplo-- antes dos 45 anos de idade.
Os cânceres da síndrome de Li-Fraumeni têm a mesma causa: mutações no trecho de DNA que carrega a receita para a produção da proteína p53. Essa proteína, apelidada de "guardiã do genoma", tem como principal função justamente impedir os erros de cópia do DNA que levam ao surgimento do câncer. Ela pode até forçar o "suicídio" de uma célula que passou por mutações perigosas. Assim, sem ela, o organismo perde uma de suas principais defesas.
As alterações do gene da p53 que produzem a síndrome de Li-Fraumeni são raras, atingindo uma a cada 5.000 pessoas. Mas, quando começou a se interessar pelo tema, em 2001, Achatz percebeu que o número de pacientes era bem maior do que o esperado. "Logo pensei que estava acontecendo alguma coisa estranha aqui", diz.
Os últimos anos confirmaram essa suspeita. Ficou claro que um tipo específico de mutação no gene da p53 era muito comum em pessoas do Sul e do Sudeste com Li-Fraumeni. O último trabalho de Achatz e seus colegas foi mais fundo: analisou 12 famílias com essa mutação, em princípio sem relação de parentesco entre si.
O resultado: todas carregavam o mesmo conjunto de 29 trocas de "letras" químicas no gene da p53. "A chance de todas essas trocas acontecerem juntas em famílias diferentes é baixíssima", diz Achatz. O melhor jeito de explicar isso é imaginar que todas herdaram o conjunto típico de alterações de um ancestral comum distante.
Dados obtidos em Porto Alegre e Curitiba, com milhares de pacientes, sugerem que a frequência verdadeira da mutação nesses lugares é de uma em cada 300 pessoas. O mesmo pode valer em São Paulo, afirma a médica. "Quando colocamos essas famílias no mapa, o padrão casa muito bem com as rotas seguidas pelos tropeiros que carregavam mercadorias entre o Sul e o Sudeste no século 18", argumenta ela.
A ideia é que o primeiro portador da mutação teria tido filhos com muitas mulheres ao longo da rota das tropas. Esse sucesso em deixar filhos, junto com outros fatores, teria feito com que seus descendentes estivessem presentes em número desproporcional na população de hoje.
Achatz diz que o próximo passo para fortalecer a tese é tentar estimar a data de origem da mutação, com a ajuda da equipe do geneticista Andrés Ruiz-Linares, do University College de Londres. Ela defende que valeria a pena testar a mutação de maneira mais ampla na população, para enfrentar esse tipo de câncer com a maior precocidade possível.
Fonte: Reinaldo José Lopes/Folha de S.Paulo