segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Acerto de contas com o passado da nostalgia

Logo no primeiro Woody Allen que assisti notei que ali patinava, entre a realidade e o sonho, um cineasta perdido na nostalgia e, ao mesmo tempo, um humorista que fugia do rótulo de discípulo de Harold Loyd. O segundo Allen me deu uma certeza: o cara queria mesmo era permitir um olhar diferente sobre as coisas que não fez e, voltando a um passado talvez fictício, acertar as contas com os acidentes da vida.

"A Rosa Púrpura do Cairo" foi o primeiro e "A Era do Rádio" o segundo momento em que encontrei algumas respostas satíricas para o humor de um certo judeu novaorquino que parecia incapaz de viver longe de Manhatan e da Bigapple, mas que já batendo nos 80 anos, parece ainda perdido em seu mundo pós-contemporâneo.

Pelo menos é essa minha percepção após assistir um dos mais recentes filmes do cara: "Meia-noite em Paris". De novo a viagem ao passado, o artista incompreendido, o consumismo político-conservador, as estátuas de mármore em que se erguem os velhos chavões cinematográficos e o final feliz. É essa mesmo o sequência. Já tava tudo em "A Rosa Púrpura..." quando a personagem de Mia Farrow foge da realidade diante das telonas e lá um dia o herói salta da tela pra mudar a vida dela. Aqui Jeff Daniels bem que tentou fugir da canastrice mas, pro bem da personagem que ele intrepretava, foi melhor mesmo aliviar pra linha lateral e de bico, senão perdia a bola e ia pro banco de reservas mais cedo.

Mas voltando à "Cidade Luz", a Paris de Allen é descrita em imagens que parecem um documentário em película. Nada contra a paisagem e seus cartões postais sem metafísica (que aqui não é bastante e pensa, e muito), mas aqueles ângulos já foram explorados à exaustão e isso desde que Chabrol, Truffaut e Godard ainda escreviam pra Cahiers du Cinéma e sonhavam o que seria o Nouvelle Vague e seus retumbantes dramas cauterizados do pós-guerra europeu. (Tá, pula essa sequência e vamos logo pro que interessa).

O que conta aqui é a volta ao passado, já que o presente é dominado pela tal da globalização, o politicamente correto e o "mais do mesmo" quase sempre mais do não mesmo. Lá pelas tantas o protagonista cansa da vidinha de roteirista rico e famoso que leva em Hollywood, com a noiva fútil e sua família conservadora, e decide ir pra Paris atrás do sonho de ser um escritor cuja vida se confunda com a arte, tal qual fizeram Ernest Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Gertrude Stein e mais uma dúzia de artistas contemporâneos dessa trupe, incluindo Salvador Dalí, Pablo Picasso e Luis Buñuel.

Numa noite de tédio, o cara vai parar numa esquina parisiense, dá meia-noite, ele entra numa carruagem e faz uma espécie de volta no tempo não vivido (tá aqui Woody Allen e seu sonho jamais realizado). Ele vai bater na Paris da década de 1920 e lá encontra e convive com os nomes citados lá em cima. Até aí, é só Allen se debatendo pra realizar seu projeto mais ambicioso desde "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa".

Mas peraí, parô, parô. Até aqui só esculhambei geral, mas a parada tem suas virtudes. Aliás, tem uma virtude apenas: uma crítica mordaz à não valorização do presente. Já notou como o cara aos 50, 60 anos sempre diz que "há 40 anos tudo era melhor"? Pois o avô dele, 40 anos antes, também dizia: "há 50 anos tudo era melhor" e daqui há 60 anos vai ter neguinho dizendo: "em 2012 o mundo era outro". Quem tem razão? Talvez o talvez!

Digo isso porque o protagonista do filme convive com toda essa turma de mitos e se deslumbra por isso, mas quem viveu a década de 1920, em Paris, topava com Picassos, Dalís e Buñuels, pelas esquinas, trocava insultos e sopapos com Hemingway nos botecos esfumaçados, discutia literatura e política com Zelda e Scott Fitzgerald, nos elegantes cafés, e achava tudo muito natural. Como hoje a gente só encontra essa trupe nos livros, documentários, museus, galerias de arte e páginas na internet, os mitos se multiplicam e tem quem ainda pergunte: "esses caras existiram ou são também ficção de si mesmos?". Resposta: só Bill Gates sabe!

Ah, antes que eu me esqueça até o velho Bill vale umas palavras de respeito. Mas antes disso, lembro de outra personagem de "Meia-noite em Paris": é uma estudante de moda que se envolve com o protagonista e, só pra variar, vive na Paris dos anos 20 e acha aquilo um tédio. Numa viagem dentro da viagem, ela vai pra Paris de 1800 e dinossauro, se deslumbra com a Belle Époque e diz que quer ficar por ali mesmo, que se achou no tempo-espaço. Só que lá, ela e o protagonista encontram outros tipos também insatisfeitos com o presente e que dizem que o supra sumo da humanidade estaria na Renascença. (E agora, mermão? Insatisfação geral com o presente, o passado e o passado do passado? Que que eu faço?)

Se estamos em 2012 e tem quem ache que a década de 1920 seria a ideal, então é certeza absoluta que daqui há 100 anos vai ter gente dizendo: "puxa, como eu queria ter vivido em 1990, 1995, quando a internet tornou-se comercial e revolucionou as comunicações e relações humanas" ou "como seria bom ter sido contemporâneo de Bill Gates, o cara do Windows e da Microsoft, com Steve Jobs, o gênio da Apple, do Macintosh, de Orkut Büyükkökten e a rede social que criou e também de Mark Zuckerberg, garoto-prodígio que inventou o Facebook".

Sentiu a pressão, mermão? É isso aí: somos contemporâneos de uns caras que também mudaram e ainda ajudam a mudar, a cada dia, esse globo girante que a gente habita e não percebemos isso. Saber pelo noticiário que a fortuna de Bill Gates já se aproxima do trilhão de dólares ou que "A Rede Social" (que considero um filme estapafúrdio de tão fraco) ganhou o Oscar Hollywoodiano é tão descartável quanto deletar spams ou bloquear vírus que roubam senhas. É o que os sabichões tão poeticamente chamam de "descartabilidade". Mas, traduzindo em miúdos, até o Paulo Miklos já cantou a bola em um de seus discos: "Vou Ser Feliz e Já Volto". (Eu não queria, mas sou obrigado a dar o veredicto: SÓ PRENDENDO!)

Câmbio, desligo

Foto: Divulgação

Sérgio Augusto
Editor da Academia da Palavra