domingo, 27 de dezembro de 2009

"Ervas daninhas", de Resnais, brinca com absurdos do acaso

Nunca se sabe que surpresas reserva um novo filme de Alain Resnais ("Medos privados em lugares públicos"). Aos 87 anos, o cineasta se mostra capaz de desconcertar saudavelmente os espectadores ao trazer para a tela "Ervas daninhas". O filme, que teve sessões lotadas na última edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entra em cartaz apenas na capital paulista.ç

O enredo adapta o romance "L'Incident", de Christian Gailly, mas Resnais transforma a história com estilo muito pessoal, seguindo um roteiro de Alex Reval. No Festival de Cannes 2009, onde "Ervas daninhas" concorreu à Palma de Ouro - a quarta vez na carreira de Resnais -, o júri presidido pela atriz Isabelle Huppert decidiu criar um troféu sob medida para ele: Prêmio Especial pelo conjunto da obra e excepcional contribuição à história do cinema. Nome longo, mas bem adequado para o diretor de obras-primas como "Hiroshima meu amor" (1959), "Ano passado em Marienbad" (1961) e "Providence" (1971).

É difícil até definir o gênero de "Ervas daninhas". Trata-se ao mesmo tempo de um drama, uma fantasia, uma comédia de tons negros e absurdos. Os personagens surpreendem os espectadores com suas reações, mantendo sua curiosidade sobre o que farão em seguida.

Há um frescor na própria maneira com que Resnais conduz sua câmera, que também nunca se sabe aonde vai nos levar. Um bom exemplo é quando ela abandona personagens falando numa sala, numa reunião familiar, e mostra as paredes, os objetos, as janelas. Enquanto isso, continua-se ouvindo ao longe a conversa entre Georges Palet (André Dussollier, de "Medos privados em lugares públicos"), sua mulher, Suzanne (Anne Consigny, de "Um conto de natal") e seus filhos.

O principal relacionamento focalizado no filme desenvolve-se entre Georges e a dentista Marguerite Muir (Sabine Azéma, também de "Medos privados em lugares públicos"). Duas pessoas que não teriam por que conhecer-se, mas cujos destinos acabam unidos pelo incidente banal de Georges ter encontrado a carteira de Marguerite, cuja bolsa havia sido roubada.

O próprio diálogo interior de Georges para decidir o que fará com essa carteira de uma desconhecida, cuja personalidade ele tenta decifrar pelas fotos de seus documentos, sinaliza uma perturbação emocional. Não que Georges seja louco propriamente, mas sem dúvida disfuncional no limite da bizarrice.

Seguem-se diversas situações marcadamente nonsense em torno da devolução da carteira - incluindo-se algumas cenas hilariantes numa delegacia em que Mathieu Amalric ("A questão humana") interpreta um excêntrico investigador. Estabelece-se, desta forma, uma relação um tanto truncada entre Georges e Marguerite, a princípio mediada por cartas e pela secretária eletrônica da dentista.

Ironicamente, as reações disparatadas de Georges terminam por despertar a curiosidade de Marguerite - não só a dela, mas a de sua colega e amiga, Josepha (Emmanuele Devos, de "Reis e rainha"). E também a triste mulher de Georges participa sutilmente desta espiral de sentimentos. Não é um detalhe gratuito que Marguerite seja piloto de avião e Georges, fascinado pela aviação. São fatos que tem, aliás, papel fundamental no desfecho, igualmente inesperado.

Fonte: Neusa Barbosa/Cineweb