sexta-feira, 29 de julho de 2011

"Zezinho" e a capacidade de rir de si mesmo


Jô Soares pode ser considerado tudo (egocêntrico, exibido, chato) pelos críticos de plantão, entretanto uma coisa não se pode ignorar: o artista é um dos poucos humoristas que nasceu com uma virtude rara entre os seres humanos: a capacidade de rir de si mesmos, a mesma usada por gênios como Charlie Chaplin, Buster Keaton, Cantinflas, Federico Fellini, Orson Welles e Woody Allen, só pra citar alguns dos grandes dos últimos 100 anos, para dizerem o óbvio, quase sempre ululante: o homem é geneticamente alegre, até que se prove o contrário e o riso liberta. Essa é sensação que tenho cada vez que assisto as reprises, promovidas pelo Canal Viva, das peripécias do camarada na TV Globo nos anos de 1980, e, em especial, aquele que considero o melhor dentre seus mais de 200 personagens: o "Zezinho".

Sabe aquele cara bonachão, paulistão, com um bonezinho na cabeça, a latinha de cerveja na mão esquerda e o controle remoto na direita e que vivia ameaçando o "gôido" Jô com um "crique" (clique no controle remoto para desligar a TV) cada vez que o humorista se despedia ao final de cada programa? Aí o Jô (invariavelmente vestido com ternos dourados ou prateados) parava tudo e começava a discutir com aquele telespectador ranzinza e abusado, que vivia cobrando, esperneando e reclamando por um "stripitrise" que nunca acontecia.

Lembrou, né? Ali estava, ao mesmo tempo, uma homenagem à criança que na verdade o Jô nunca deixou de ser, uma resposta a todas as críticas que certamente ele ouvia por causa do programa "Viva o gordo" e, pra completar, uma autocrítica rasgada ao seu talento indiscutível, seja como ator, humorista, escritor, artista plástico, músico e tantas outras atividades a que o "gôido" até hoje se dedica.

Homenagem porque o próprio nome do personagem, "Zezinho", era como o pai o chamava na infância, já que o nome de batismo do Jô é José Eugênio Soares. Daí já começa a piada do cara consigo mesmo e com os próprios telespectadores. Quando tinha o humorístico na TV, Jô criou tipos impagáveis, como o "Décio" (aquele que agarrava a mulherada nos salões da alta sociedade e, quando o marido questionava, ele começava a contar as loucuras que já havia feito com a respeitável senhora ao som do "não se deprecie mulherrrrrrr"), o governador "Meu nome é trabalho" (sátira em cima do então governador carioca Moreira Franco) e o contra-regra piloto (aquele do "ihhhhh, falha nossa"). Mas o "Zezinho" era a despedida do programa e, quando ele aparecia, era a senha para a criançada desligar a TV e ir dormir.

Se ainda hoje, com um talk-show que copia descaradamente os similares norte-americanos, como o do David Letterman, Jô é alvo de críticas pesadas, imagine o que os "intelectuais" de época não falavam dele. Interessante é que o cara tinha mais quilometragem em leituras, filmes, musicais e debates artísticos do que metade de seus críticos juntos, mas nem por isso deixava de pagar o maior mico com um humor feito para agradar o brasileiro de qualquer idade e nível de escolaridade. Talvez essa capacidade de se comunicar com tantos ao mesmo tempo provocasse a ira dos "sabe-tudo", que parecem brotar como cogumelos após a chuva só pra testar a paciência dos caras verdadeiramente talentosos.

Cada vez que o "Zezinho" mandava um "Ô gôido, mas tu é muito sem graça rapá" e o Jô respondia: "Você é grosso mesmo" e o "Zezinho" treplicava: "E tu acha que tu é fino, sendo gôido desse jeito?", era como se o humorista mandasse recados cifrados aos fãs, aos não fãs e a si mesmo, exercitando, a um só tempo, a capacidade de diálogo fácil com todos os públicos. E mais: cada troca de farpas com o "Zezinho" era uma catarse, talvez um canal para acertar as contas com alguma aresta lá do subconsciente. Taí a manha do grande artista: rir de si mesmo pra remover rugas internas e, ao mesmo tempo, divertir o resto do mundo.

Mas o melhor mesmo era quando o Jô dizia: "Já sei, já sei. Quando você Zezinho reclama tanto e diz que o programa não presta é porque tá querendo o streap tease". Aí o personagem começava a saltar na poltrona, a modelo começava a tirar as luvas e, quando a coisa começava a esquentar, o Jô parava tudo por algum motivo fútil e deixava o seu alter ego no desespero, já às portas de um ataque, porque o "striptrise" mais uma vez não aconteceu.

Charlie Chaplin, por cerca de quatro décadas, entre os curtas-metragens do começo do século XX e o longa "O grande ditador", de 1939, usou e abusou da veia cômica, do exorcizar os traumas da infância e da capacidade de fazer rir e chorar a bordo do "Carlitos". Woody Allen é mais caústico e contemporâneo, sendo que nos últimos 40 anos repetiu o personagem cheio de neuras, ansioso, histérico, incompreendido, que se enche de calmantes e estimulantes em grandes filmes como "Manhattan", "Noivo neurótico, noiva nervosa" e "Zelig".

O "Carlitos", o "Zezinho" e o "Zelig" são parte de um mesmo personagem, usado pelos três humoristas para expressar as inquietudes e percepções de seus criadores em momentos distintos do século XX. Uma coisa é certa: os caras criaram, deram vida e divertiram milhões de pessoas pelo mundo com uma peculiaridade única, chamada fina ironia. E o "Zezinho", melhor que tudo, com um tempero bem brasileiro.

Câmbio, desligo!

Sérgio Augusto

Editor da Academia da Palavra