segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Pelé teria sido o que sempre será


Entre o "teria sido" e o "para sempre haverá" vai uma boa distância. Digo isso depois que assisti (pela trilionésima vez) um festival de gols da seleção na Copa de 70, no México. Especialmente os gols que o Pelé não fez me chamaram a atenção. Cara, imagina o que teria sido do futebol se aquele "drible da vaca" que ele deu no Mazukiewicz, goleiro do Uruguai, tivesse acabado no fundo das redes? E a bomba lá do meio de campo, que fez o goleiro Viktor, da então Tchecoslováquia, voltar pra baliza feito uma barata tonta, torcendo como doido pra bola mudar de rumo? A mandinga (???) do agnóstico Viktor, infelizmente, deu certo.

E aquela cabeçada contra a Inglaterra, que fez o Gordon Banks voltar, não se sabe de que planeta, pra defender de fora pra dentro, e evitar o gol do Rei? Teriam sido, sem dúvidas, golaços históricos, mas justamente por não terem sido é que ficou o mito e os sonhos que metade do mundo já construiu sobre eles.

Mas deixemos de lado os entretantos e vamos correr nos finalmentes (Odorico Paraguaçú, segura tua onda aê, rapá!). O Pelé é um superstar, adorado por muitos, criticado por outros, mas jamais ignorado por todos. Dentro de campo foi, e ainda é o maior. Parou de jogar e virou um "jetsetter" e uma lenda viva, bem articulado e, de vez em quando polêmico. Mas o que seria da vida não fosse a polêmica pra bagunçar o coreto?

Falando em bagunçar geral, lembro de outro lance daquela Copa de 70, também contra o Uruguai. É quando o zagueiro pisa no Pelé, dentro da área, e o juiz finge que não vê. Na jogada seguinte, bola na linha lateral, quase na linha de fundo, e lá vem o cavalo uruguaio de novo, pra quebrar o 10. O Rei dá uma olhadela, tem a certeza que o juiz tá longe, arma o braço direito e, num golpe de mestre, arrebenta o maxilar do uruguaio com uma cotovelada linda, poética, arrasa-quarteirão. Sofisticado como ele só, ainda se embola com a vítima e rolam os dois pelo gramado. Pelé expulso? Claro que não. A besta do juiz ainda dá falta contra o Uruguai. KKKKK

E se o Pelé tivesse se intimidado? O uruguaio ia quebrar a perna dele e adeus futebol. Já pensaram? O Rei parar de jogar no auge da majestade por causa de um beque medíocre e violento? O mesmo se aplica às especulações e mitos que muito se cria em cima do "quase", do "poderia ser" e mesmo do "talvez". Há quem diga que o ser humano faz os mitos e deles se alimenta. Ô raça esquisita....

E que tal deixar de lado os entretantos do "haveria de ser" e chutar logo na direção do "tá valendo"? Nada melhor que matar a parada de uma vez e ainda ficar com o troco do "já foi", valeu? Nisso o próprio Pelé foi mestre. Naquele mesmo jogo contra Tchecoslováquia, ele desequilibou a partida com uma das maiores criações da metafísica universal. Não só da metafísica, eu diria até que da aerodinâmica.

Gerson pega a bola na intermediária do adversário, enxerga o Pelé dentro da área e faz o passe redondo, milimétrico. Como no futebol, assim como na vida, não há perfeição, o lançamento tem endereço certo, mas o 10 não tá sozinho; tá cercado de zagueiros tchecos e tem que deles se livrar o quanto antes.

A bola vem decaindo e o cara toma três decisões imprevisíveis, numa fração de segundos. Primeiro: o mais indicado seria cabecear; a bola vem pronta pro arremate e é só testar e correr pro abraço. Pois ele salta e mata a bola no peito. Nessa decisão tomada, o sistema defensivo tcheco desaba. Se fosse mesmo cabecear, como mandam as leis da física, daria tempo do adversário chegar junto e abafar a jogada pra escanteio.

Segundo passo: matada a bola no peito, é hora de dar um "chega pra lá" nos adversários que restaram na parada. De novo, a surpresa: assim que pousar no chão, os zagueiros tchecos vão correr em cima como que acordados de um letárgico "rigor mortis", que durou poucos segundos. Então Pelé deixa a bola quicar no chão.

Não perde o raciocínio, fera: quicou no chão a bola, observa como o último dos adversários, ainda na "cola" do mestre, se dá por vencido e deixa pra lá. Saca só como ele para e age, resignado, como quem diz: "seja o que Deus quiser". Mas a jogada ainda não foi liquidada. Falta o ending com chave de ouro e diamantes.

Falta o goleiro Viktor, que tá bem posicionado embaixo das traves. O Pelé com toda a certeza vai mandar a bomba de canhota. Eis que vem a terceira e última das supresas nesse golpe de mestre: o cara troca de perna e manda de direita, colocado, na veia, no ângulo, e metade do mundo deixa o queixo cair, para, e em seguida aplaude a obra de arte.

Uma jogada com todos os ingredientes do gênio, do craque, do "teria sido", que, em segundos, se torna o "está sendo" e "para sempre será". Mais que qualquer palavra ou frase de efeito, fico com esse lance do Pelé. Está aí a síntese e o acaso, o que parecia impossível e o resultado prático, o "nunca" transformado em "sempre" e que "para sempre" ficou.

Câmbio, desligo

Sérgio Augusto

Editor da Academia da Palavra