segunda-feira, 3 de setembro de 2012

O quase rei e o herdeiro da coroa jamais destronada




Heleno de Freitas nasceu e morreu para o futebol e a vida enquanto Pelé nascia e se perpetuava para o mundo. Até aí nada demais, não fossem as tantas coincidências que se encarregam de emparelhar o trágico ao glorioso, a loucura à perspicácia, o fechar das cortinas à lenda viva. Tudo isso pude comprovar dia desses após assistir “Heleno, o príncipe maldito”, e dar o apito final na leitura da biografia com que tentaram homenagear o lendário atacante do Botafogo de Futebol e Regatas. Batendo datas, jogos memoráveis e também lances irrelevantes, cheguei à conclusão que Heleno e Pelé são os dois lados de uma mesma bola, por muitos conhecida como “a vida é um jogo sem replay, nem prorrogação”.

Heleno despontou nos profissionais do Botafogo carioca em 1940, ano em que Edson Arantes do Nascimento nasceu. Aprontou umas e outras, bateu nos adversários (e até nos próprios companheiros), pilotou os carros mais luxuosos da época, conquistou as mulheres mais belas e, apesar de tudo isso, foi campeão uma única vez: carioca, em 1949, mas vestindo a camisa do Vasco da Gama. Nasce o primeiro mito: o melhor jogador do Brasil e das Américas foi quatro vezes vice-campeão pelo time que tanto amava e a quem dedicava o sangue, e venceu um torneio pela equipe que gostava de judiar.

Inaugurado o Maracanã em 1950, Copa do Mundo no Brasil, nada mais natural que Heleno, estrela do Sulamericano em Santiago, no Chile, cinco anos antes, comandasse o temido ataque brasileiro, formado ainda por Ademir de Menezes, Zizinho e Jair Rosa Pinto, certo? “Nunca”. Uma única, solitária, rasteira e definitiva palavra, do treinador da Seleção, Flávio Costa, para quem havia o jogador apontado um revólver meses antes da convocação definitiva, tirou o atacante do Mundial. Morre o segundo mito: Costa havia dito que sem Heleno o Brasil levava o caneco.

E não é que o Brasil conseguiu perdeu de virada, dentro do "Maraca" lotado, para um Uruguai que só tinha uma jogada: lançamento de Obdulio Varela, entrada de Giggia como uma flecha pela ponta-direita, chutaço no canto esquerdo do arqueiro brasileiro Barbosa? Uruguai campeão, nem o próprio capitão Obdulio acreditava. Só se deu conta da parada no dia seguinte, quando se reconheceu na capa de um jornal carioca, após uma noitada impublicável num cassino de má fama. Não tem jeito; boemia rima com bola em qualquer época...



Mas o show, ou a vida, ou, ainda, o princípio da morte, forneceu mais uns capítulos para o centroavante Heleno: desabou física e mentalmente, foi internado num sanatório já com sífilis avançada, morreu esquecido, pobre, pior que um farrapo. Quando faleceu, Heleno sequer sabia que o Brasil havia sido campeão do mundo, na Suécia, em 1958. E pelos pés daquele que herdaria a coroa que o botafoguense, por pouco, não ostentou na cabeça: Pelé.

Também mineiro, o pequeno Edson não teve berço de ouro nem estudou nas melhores escolas. Se conheceu Heleno, foi pelas transmissões dos jogos via rádio. Soube desde cedo que vida de boleiro é curta nos gramados. Tratou de aproveitar todas as chances, se consagrou, parou e jogar e continua uma grande estrela; arrasta multidões e admiradores por onde passa e sua palavra tem influência dentro e fora de campo, quase quatro décadas após pendurar as chuteiras.

Fora o fato de que defenderam grandes clubes brasileiros e de que ambos vestiram uniformes alvinegros (Pelé jogou 90% de sua carreira com a camisa do Santos Futebol Clube), até no registro da trajetória dos craques há as faces da derrota e da glória. Mesmo sendo o jogador mais fotografado de sua época, Heleno não aparece em mais que centenas de fotos e só agora, mais de 50 anos após sua morte, um livro e um filme contam suas desventuras.

O livro é por demais insosso, ofusca lances primordiais de grandes partidas e parece ter sido escrito por um professor de física quântica que jamais parou para assistir um 11 contra 11. Tenho a impressão é que o camarada até hoje está na dúvida se a bola de futebol é redonda, quadrada ou, quem sabe, oca. Em certas passagens, vislumbro não a imagem de um boleiro, mas a sombra de um trágico cantor de tangos com meiões, chuteiras....e um copo de uísque.

Faltam alguns anos luz pro "biógrafo" chegar aos pés de um Ruy Castro que, mesmo hiperbólico, metafórico e passional, cometeu o grande "Estrela Solitária", um retrato comovente de outro mito botafoguense: Mané Garrincha. A escrita é morna, não tem paixão e livro sobre jogador de futebol, escrito por quem não gosta do "bola-no-pé", não é livro que se dê o respeito.

Quanto ao filme, bem que tentei nele enxergar algum link com a arte futebolística. Mas ali só encontrei o personagem do ator Rodrigo Santoro "calibrado" de éter e metido em noitadas ao invés de um craque de futebol, justamente o que deu fama a Heleno de Freitas. São poucas as cenas em que ele aparece com aquela postura de boleiro que come grama e enfia o queixo no bico da chuteira. Filmaram tudo em preto e branco e com partidas realizadas à noite, debaixo de chuva artificial, e em câmera lenta, para tentar tornar o retrato em algo poético. Fracassaram.

Cláudio Adão, um dos grandes centroavantes brasileiros de todos os tempos, treinou o ator para as cenas de futebol e diz que, quando começaram os trabalhos, Santoro estava tão perna-de-pau que parecia dar "canelada em tijolo". Tá certo, tem o lado promíscuo e anti-heróico do personagem, mas se a intenção era mostrar a glória e decadência de um jogador de futebol, o que não se vê no filme é justamente o "molho": futebol. Credibilidade, então, para se interpretar um goleador, é coisa de outro mundo. Gol contra! 

Por outro lado, Pelé é personagem de milhões de reportagens, documentários, teses de mestrado e doutorado e o filme de sua vida ainda está acontecendo, ao vivo e a cores, diariamente, nas telas da globalização. O cara caminha pros 72 anos de idade, e faz parte do comitê organizador da Copa de 2014. Qual a receita desse sucesso inacabável? “Juízo”, diriam alguns; “sorte”, alegariam outros.

Apesar de todas as ressalvas, no placar eletrônico da mitologia do futebol, contudo, ainda acredito, sinceramente, que não há perdedores quando se fala em Heleno e Pelé. Um quase foi rei, o outro é discípulo de um quase rei jamais destronado...

Sérgio Augusto
Editor da  www.academiadapalavra.blogspot.com 
Fotos Divulgação